segunda-feira, 17 de junho de 2013

Capítulo I [parte 1]


I

Bento Cego veio ao mundo em uma manhã do anno de 1821, no formoso quarteirão do Registro, do grande e fertil municipio de Antonina.

A choupana em que elle nascêra, humilde tenda de laboriosos lavradores que viviam de caça e pesca, e dos productos de sua pequena colheita horticula,--estava assente, como um ninho isolado de gaivota, á beira arenosa da praia, tendo o rustico frontal de ripas volvido para as irradiações do Levante.

Oh! como é pittoresco o quarteirão do Registro, com aquella chanfradura intermina de costas que se perdem ao longe; com aquellas bordaduras verdes de perys, onde, nas horas de mormaço estival, vae postar-se o passaredo em agradavel retouço, fifiando para as caboclas que passam ou para os homens que exsudam na faina productora das roças!

Tudo isto tem o largo calor fortificante da vida rural, e o tom esfuziante e fresco da virilidade bucolica.

Lá, mais para a frente, estende-se muito lisa a lamina espelhante do mar, deixando transparecer no nitido prateamento das aguas os grossos cardumes de peixes, que se acoitam nas enseadas e nos praturás do mangue, corridos pelo constante farejar das tarrafas ou pelo bulicio dos remos que scindem o elemento n'um raa-raa-raa adoravelmente piscatorio.

Nesse mar que ás vezes tem as suas tormentas e os gemidos do nordeste rijo e furioso, solevam-se aqui e alli massas verde-negras de ilhotas, e de distancia á distancia, como Promotheus de granito, avolumam-se montanhas abruptas, que se esfumam achatando-se lá onde o horisonte é quase uma miniatura de marinha ou um bosquejo dubio de paysagem ao longe.

Escarpas, umas cobertas de salsugem, outras escalavradas pelo continuo lavar das ondas, estão secularmente mudas na taciturnidade apavorante do mar, lembrando sphynges na vastidão dos desertos.

É do alto desses blocos alcantilados, depois das abundantes pescarias da noite, que os caboclos soltam ás namoradas das costas as suas apaixonadas solfas e as enternecidas cantilenas de amor. Os biguás e as garças voam em bandos céleres, soltando uma rude ironia inconsciente a essas expansões de vocalisação amorosa, com o soido metallico dos seus pulmões selvagens.

E o caboclo então, mordido de ciumes, acompanhando com os olhos o bando de biguás forasteiros, exclama em poeticos assomos:


“Ai, Maria, não creias”
“No que disse este biguá,”
“Elle mente e vem de longe:”
“Das bandas de Parnaguá.”


Quase sempre as Marias dão resposta a este sólo debaixo dos frondentes laranjaes, furtivamente, receiando a austera reprehensão paterna:


“Não me julgue tão voluvel,”
“Nho Jango do Cubatão;
“Eu sei ter um só namoro,”
“Não trahio meo coração.”

Taes situações têm, mais tarde ou mais cêdo, desenlace na capella de N. S. do Pilar.

O João antes de tudo trata de construir uma choupana, de abacellar a mandioca, de fazer uma tarrafa, e depois... vae buscar o regalo de seus dias: --aquella por quem elle soffria a inclemente ironia dos biguás.

Ai, a festa do noivado!...

Lá branqueia, de volta, uma grande confusão de canoas. Aqui, na praia, reboam os rojões e a salva dos morteiros.

As violas são encordoadas de novo para as porfias do fandango, e as matronas preparam as broinhas e os sequilhos, o beijú e o melado, o café e o cúscús, esperando a foliona comitiva do noivado.

-- Que bello! Como vem a noiva tão bonita! Como lhe orna tão bem a grinalda que nho Zé Leandro mandou buscar do Rio!... dizem as mulheres do logar, --ao saltar em terra meio rubra, meio incandescida de volupia e de certa timidez ingenua aquella que recebera a sagração do matrimonio.

O noivo, esse traz o pensamento fixo em dois objetivos: nos beijos que ha de estalar nos labios quentes da esposa por traz da moenda, e nos malditos sapatos que lhe comprimem os pés, fazendo-o andar em arreganhos por entre a multidão de convidados.

Seguem-se as comezainas e o fandango, em que limpidas gargantas de cantadores se fazem ouvir no enthusiastico dialogar rythmico dos porfias á viola.

É ahi que se exhibem os guapos menestreis da roça, attrahindo de districtos remotos, nestas e em outras occasiões de folgança, os mais requintados trovadores e violeiros.

Depois, ás 5 horas da manhã cessa a tumultuosa algazarra do fandango. Os noivos, alfinetados por um desejo intimo de repouso, vão se deitando sorrateiramente nos pequenos giráus de páo-á-pique, feitos á laia de leitos, servindo de acolchoamento a esses toscos tabiques de descanço magnificas superposições de esteiras de pery.

Chega logo o próle, -- ninhada robusta e valente, retemperada na gymnastica dos remos e das enxadas, do mar e das coivaras.

Os caboclinhos exercitam-se a principio no manejo do eixo das moendas, na raspagem da mandioca, no dedilhar dos maxetes. Completam depois esses rudimentos de educação rural na grande escola pratica de oceano e das roçadas.

A viola é a sua lyra; é com esta que elles se fazem cavalleiros andantes para irem buscar o profugo suspiro das raparigas de outras devezas, incutindo-lhes n'alma e no coração as cavatinas do amor.

Bento Cego veio, pois, desta cosmogonia indigena, desta existencia saturada de perfumes das matas e do acre exhalamento das marésias. Os seus cinco irmãos passaram por toda a gradação da vida bucolica, com a mesma alma dos ingenuos sonhadores dos sitios, com as mesmas inclinações simples dos rudes filhos do sertão, tendo no espirito livre e na liberrima amplitude da vida as mais eloquentes demonstrações da felicidade nativa.

Bento, porém, por um singular capricho do destino, sentio os olhos fechados para o eterno cosmorama da natureza, e não vio sol, nem luas, nem estrellas, nem a movimentação crepitante do mar, nem a enfloração pulchra das serranias, nem o busto tostado das virgens das florestas. Apenas ele comprehendia o poema do bello pela intuição das coisas: pelo som, pelo tacto, pelo cheiro, pelo ruido de existencia que se lhe derramava de chofre lá no intimo do cerebro incendiado e do peito gemebundo.

Seus paes, -- José Cordeiro, vulgarmente chamado José do Registro, e Anna Benedicta Maria levam-n'o de bairro em bairro, quando faziam suas excursões fóra de Registro.

Antonina, Barreiros, Morretes e Porto de Cima foram os caminhos primeiramente palmilhados pela infortunada criança nos tempos das tradicionaes festas do Divino ou do orago dessas risonhas populações do littoral.

Quasi sempre á porta da propria tenda Bento encontrava as seducções do estro e das modulações musicaes. Não poucos cantadores, em noites de plenilunio ou nos dias de sueto, iam porfiar com o seu irmão Eleodoro Cordeiro, mais conhecido por nho Doro,--individuo famigerado como trovador destemido, e como rabequista e violeiro de raro merecimento.

Oh! quantas vezes o Cego não teria surtos magneticos de inspiração, ouvindo a plangencia da viola e a baritonante vóz do irmão!

Sim, genio que elle era, intimos delirios de vôo lhe haviam de torturar a mente, quando sentia junto de si, fogosa e tentadora, a palpitação instrumental das primas e bordões e as fatidicas resonancias das cantigas improvisadas na quietude carinhosa do lar. Mas o pobresito do Bento ainda não se dispunha a librar as suas azas de condor ás remotas regiões da phantasia.

A aguia implume carecia da bonança protectoral do ninho: era cêdo para ascender ao constellado firmamento da fama. O amor materno ia ainda preparal-o com a sagrada uncção do seu conforto para os imprescrutaveis designios da sorte.

O bairro do Registro, desenvolvido n'aquelles tempos pelo espirito de iniciativa de algumas pessôas operosas, como os Mello e os Trancoso, cuja energia muito concorrera para o aformoseamento desse torrão delicioso, --tinha phases de verdadeiro sacudimento commercial, e em que suas praias abrigavam innumeras embarcações vindas de Santos e Santa Catharina em busca dos magnificos productos de olaria, alli fabricados.

As esteiras e as farinhas forneciam tambem proveitosa mésse de recursos aos habitantes do logar.

Os lanchões, descendo e subindo o rio Nhundiaquára como portadores da agitação mercantil dos povos de Morretes, Parananguá e Antonina, fundeavam no porto do Registro, seguindo depois a rota que levavam.

O Cego, pois, se não possuia olhos para acompanhar esta aproximação de gente; tinha alma para sentir e comprehender que tudo se move debaixo do grande estellario infinito e quiz então andar...e andou dias inteiros pelo bairro, sem que ninguem pudesse reter-lhe a marcha.

Uma vez esteve cinco mezes fóra das vistas paternas. Quando voltou já sabia encordoar e temperar violas, e, coisa admiravel! elle mesmo dispunha as cordas no instrumento, sómente guiado pela delicadeza do tacto e por uma decidida vocação musical.

É que já se apresentavam as primeiras manifestações do talento, e deste, como chrysalida deixando o envolucro, devia irromper a iriada borboleta do genio.

Quando Bento completára os dezessete annos de existencia, seo pae e nho Doro já dormiam o somno etterno lá n'um reconcavo solitario da praia, onde freme o mar nas enchentes de Junho e onde tambem resa benignamente o soluço crébro das irrequietas ondinas.

A velha mãe, depois de semelhante fracasso domestico, vio todos os filhos tomarem posições matrimoniaes, ficando só no exilio da viuvez como guarda fiel do desventurado ceguinho.

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sexta-feira, 7 de junho de 2013

A quem nos lê

Se o lyrismo, como diz Laprade, é a “essencia intima” da poesia, certo elle se diffundirá com maior influxo nas trovas populares, que são a expressão puramente sentimental do genio poetico das nações.

Theophilo Braga diz com irrefutavel discernimento scientifico: “As formas da poesia popular, que revestem os sentimentos das raças que entraram no periodo actual da historia constituindo-se nacionalidades, têm impresso em si o cunho das civilisações que se encontraram.”

De facto, a musa das multidões é, na sua caracteristica simplicidade, a eloquente demonstração do valimento ethenico de um paiz, e seos subsidios devem ser apurados para que se possa levantar o monumento do tradicionalismo patrio.

Nada é mais bello do que um povo poder apresentar ao consenso da historia as manifestações poéticas de sua sentimentalidade.

Foi levado por esta indiscutivel verdade que Lemke firmou o seguinte substancioso principio: “Assim como toda a combinação chimica é seguida de um desenvolvimento de calor, toda a combinação de nacionalidade é seguida de um desenvolvimento de poesia.”

Entre nós, cá neste recesso do territorio brazileiro, parece que a linha heraldica do nosso antigo cancioneiro vae sendo absorvida pelas invasões dos costumes estrangeiros. Rocha Pombo, em seo Paraná no Centenario, prevê esta transformação.

Diz elle: “Hoje, não mais se canta como se cantava nos bairros e sitios, tanto da marinha como do interior. A vida dos centros, o bulicio das cidades foi contrafasendo a primitiva simplicidade dos usos e costumes populares.”

Dest’arte, para que não fiquem perdidos os bellos cabedaes do cancioneiro paranaense, torna-se preciso que os contemporaneos incumbam-se de leval-os á luz de publicidade, no intuito de prestar homenagem ao talento dos nossos rusticos trovadores e um grande serviço ao levantamento das nossas tradições.

Nós, sem pretenções a glorias litterarias, apenas traçamos esta monographia com a intenção de render um preito de admiração sincera áquelle singular cantor que em vida foi conhecido por Bento Cego, e que correo mundo atravessando todos os perihelios do infortunio, mas dignificando sempre o nome de sua terra natal.

Nascido nas mesmas plagas onde Bento tantas e tão amarguradas vezes dedilhára a sua planturosa viola, tinhamos a obrigação de ser quem primeiro devia traçar estas linhas de amor, feitas ao impulso de saudosas recordações infantis.

E assim procedendo, procuramos tão sómente pôr em evidencia aquella lei de selecção historica, vulgarisada sob a denominação de patriotismo.

É devido á força propulsora dessa soberana lei de progresso, que os povos costumam prestar ruidoso culto de veneração aos seos coevos, destacando em pomposas homenagens triumphaes aquelles que se tornam sobrehumanos como Buoronetti ou estupendos como Wagner.

Bento Cego, genial na trova e na execução da viola, mereceo tambem uma apotheose.

Não seremos nós quem a fará, porque nos são falhos os indispensaveis recursos materiaes para a realisação de semelhante tarefa. Queremos ao menos accender as gambiarras do affecto publico em torno de quem, como o Cego, tanto se engrandeceo engrandecendo as tradições do Paraná.

Nomade, talvez por impulsão da trevosa noite dos olhos, Bento atravessou muitas vezes as nossas linhas fronteiriças e foi cantar nas campanhas do Rio Grande, nos sitios catharinenses e em cidades de S. Paulo e Minas Geraes, deixando por onde andou nitidos fulgores de espirito—cheios dessas miraculosas divinisações de intelligencia d’onde irrompem as suas caprichosas creações geniaes.

Que seja elle o Homero destas regiões do sul, já que entre ambos tanto se affinisam os elances da sorte e o condão da imaginação poetica.


A nossa obra é, pois, simplesmente uma lagrima vertida sobre a cova rasa do nosso Homero, desses que, se vivesse nos faustosos tempos byzantinos, com certeza teria seo nome inscripto em brazões de ouro ao lado dos semi-deuses da poesia hellenica.

CAPA [folha de rosto]

Bibliotheca da Impressora

9

NESTOR DE CASTRO



Bento Cego





“... et il arriva comme si um absurde coup de vent eût passe tout à coup.”
Villiers de L´Isle Adam.

CORITIBA

Typ. a vapor Impressora Paranaense
Correia & C.

1902

Exposição Paranaense de 1900: MEDALHA DE OURO